terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A Moralidade na Trepadeira

O vegetal popularmente conhecido como “trepadeira”, cujo nome também pode fazer referência aos diversos tipos de plantas que se apóiam em outros para conseguirem luz em lugares mais altos, neste caso indica uma espécie específica, também conhecida como Hera (Hedera helix), possibilita uma reflexão sobre moralidade bem interessante e juro que nada tem a ver com seu apelido trocadilhesco, “trepadeira”.

Conforme citado, a Hera, uma trepadeira, fixa-se no caule ou muros, enfim, um suporte rígido, com o objetivo de alcançar alturas maiores para obter luz, realizando assim sua fotossíntese, tarefa essencial a sua sobrevivência. Esta espécie, a Hedra helix, tem uma peculiaridade interessante. Além de suas habilidades fixadoras, ela consegue inibir o crescimento de outras plantas próximo a sua raiz na terra, visto que a vida dela já é difícil demais, tendo que escalar rumo a lugares altos, e qualquer outra concorrente de sais mineiras no solo poderia ser letal para ela.

Então temos uma relação de “usura” natural aqui. Uma forma de vida que necessita usar outra para sobreviver.

Puxando a reflexão para o habitual contexto do blog, nós, humanos, questiono, então não é errado usar outras pessoas como meio para atingirmos nossos objetivos? Já que também somos natureza e, pelo visto, não há problema quando isso ocorre no meio vegetal...

-NOT!

É errado, sim. Caberia muito bem citações de Kant aqui sobre seus conceitos de honra e respeito ao indivíduo, mas não pretendo estender muito o post. Mas vale a pena conceituar: basicamente, Kant defende que as pessoas, indivíduos, não podem ser considerados um Meio, mas sim um Fim. Ou seja, é errado usar pessoas para se conseguir algo, manipulá-las e etc. Isso fere o respeito e a honra da pessoa, limita a execução do seu papel como indivíduo e uma pessoa não tem o poder de fazer isso sobre outra. Um exemplo: quando um criminoso é preso, não é para a segurança da sociedade, não é porque queremos o nosso próprio bem, ou o do criminoso (já que não temos o poder de decidir o que é bom ou não para ele), mas sim meramente porque ele cometeu um ato errado e a isso devem ser aplicadas punições. Simples assim. Você fez algo errado, que pode abalar o equilíbrio ou a convivência harmônica da sociedade em que você vive, então deve pagar por isso. É uma questão de compensação, equilíbrio. Não visamos a nossa segurança, mas sim a punição como forma dos indivíduos criminosos saberem que existe uma punição para seus atos e não tornar a cometê-los novamente, preservando assim o bem comum, a convivência social.

Ok, mas eu ainda acho que se até as plantas podem, nós, como seres que fazem parte da natureza, também podemos. É a lei natural. O mais forte subjugando o mais fraco.

Novamente, NOT!

Dizer isso é inferiorizar-se como parte da criação, parte da variedade na vida na Terra. Dizer isso é faltar com respeito a todos os seus ancestrais, e não falo do seu pai, seu avô ou da sua tátara tátara tátara tátara vó. Falo do Orrorin tugenensis, do Australopithecus afarensis, passando pela Eva-mitocondrial, até seus filhos. É negar a sua evolução como forma de vida. É negar a história de toda uma espécie. Pois nivelando as suas escolhas ao nível de um vegetal, você está se inferiorizando.

E por que? Por uma simples razão. Escolha.

Nós podemos fazer escolhas racionais. Podemos medir o peso de nossas decisões. Talvez não saibamos com certeza as suas consequências, mas com toda a certeza, sabemos comparar, analisar, observar, criticar.

Cabe a nós fazermos as escolhas certas. Cabe a nós optarmos por aquilo que fará maior bem aos que nos cercam (humanos, animais, plantas, minerais...) e à sociedade.
Optar pelo melhor a sociedade é optar pelo melhor a nos mesmos, pois fazemos parte dela.
É como quando cuidamos da nossa casa, limpamos, varremos, para preservar a mesma. É como quando lavamos nossos veículos (mesmo que alguns insistam em fazê-lo com a mangueira ligada, esquecendo-se do bem precioso que é a água e de quantos não tem o luxo de tê-la encanada em suas casas).

Mais ainda, sem fazer disso um apelo poético, é quando banhamos nosso filho recém nascido. Ele precisa do nosso afeto, nosso apoio, nosso cuidado, pois ele é frágil. E frágil também é a sociedade, que precisa ser cuidada, zelada, protegida e ensinada.

Lembre, então, de fazer suas escolhas com parcimônia, paciência, racionalidade. Seja justo, seja tolerante, seja amável. Lembre de cuidar do meio em que você vive, pois assim viverá bem e melhor.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Os Na'vi e a terra como propriedade universal.

Enquanto compilo as mais de 200 respostas que vieram por e-mail a respeito do tópico anterior, pacientemente, deixo a vocês algumas observações pessoais a respeito do filme Avatar, de James Cameron, que tive a oportunidade de ver dublado e legendado, ambos em 3D.

Dica: vejam o dublado, as adaptações de diálogo estão melhores e fora que não tem aquelas letras berrantes sobre a belíssima paisagem do planeta Pandora =D


Creio que a maioria já tenha visto Avatar a essas alturas do campeonato, right?

E aí, o que acharam?

Confesso que a história em si, a essência, me parecia realmente clichê, mas sabe que constatei que não, felizmente.

O filme levanta questões que não são nada clichês, ou que, ao menos, há um bom tempo não eram levantadas com tamanha evidência em uma produção cinematográfica tão grandiosa, para citar duas:

1- Dentro da questão da guerra, não temos uma luta pela conquista de um território, pela posse, não por parte dos Na'vi. Eles tão cagando pra quem é o dono da terra, tanto é que tentaram, inicialmente, estabelecer uma comunicação com o homem, o receberam bem, dispostos a ensinar sobre o seu mundo a ele, mas ele já era um "copo cheio"... O guerra dos na'vi, a sua motivação pela sua luta, é a preservação do planeta, não pela sua posse, mas sim em defesa dos que não podem se defender, como o solo, as árvores, as plantas, os animais, enfim, todo um Sistema Vivo... Tanto que os na'vi só ganham porque Eywa (ou o instinto de preservação dos animais ao perceberem que seu habitat estava sendo destruído, o que seria Eywa, visto que a mesma não é uma "consciência divina" mas sim um fluxo/ligação que permeia os seres vivos de um planeta) convocou os animais, que podiam lutar, digamos assim, ao fim em reforço aos na'vi que estavam sendo esmagados, como no estouro de Angtsìk, os rinocerontes gigantes com cabeça de martelo..e demais animais de grande porte.

2- Outra questão importante, é a questão da identidade. Jake Sully diz que em um dado momento não sabia se o sonho era a realidade e vice versa, entendo-se que por "sonho" seria a condição dele como na'vi. Então ele adota a posição de ser um na'vi, de tomar essa identidade para si.
Mas quem é Jake Sully? O astronauta paraplégico ou o na'vi toruk makto? O que faz dele jake sully, o que o caracteriza? A forma como e onde ele nasceu ou o que ele decidiu ser? O que nos define como pessoas? O que nos temos, pensamos, raízes, cor? Ou somos aquilo que, de fato, fazemos, demonstrando com ações, a cada segundo de nossas vidas, as nossas idéias, crenças e conceitos?

Claro, ele levanta questões clichês, como o homem como vilão/alienígena ou entidade maligna contra seres benéficos e certos em sua resistência, a relação do herói e da mocinha de mundos diferentes.. mas são questões que funcionam como plano de fundo, para apresentar os personagens ao público, esse não é, propriamente, o foco da história...


Retomando a questão 1

Tendo constatado que a luta do povo na'vi é pela preservação do sistema em seu planeta e não pelo direito/posse do território em si, fica a questão: e se alienígenas invadissem a Terra, dispostos a exterminar com a vida, humana ou não (não que nós, humanos, daríamos valor às vidas não-humanas at all...), pela exploração dos nossos recursos naturais
recursos naturais do planeta, como a água?

Existe alguma propriedade, algo que nos faça donos de nosso pedaços de terra em relação ao universo como um todo?

De que valem nossas papeladas constatando o direito sobre pedaços de solo?

Eles valeriam se decidíssemos explorar a Lua e demais planetas do sistema? E para quem eles valeriam? Só para nos ou para outros seres também?

Como pode o homem dizer-se dono de algo que não foi ele quem criou, como o solo, que é um pedaço de um planeta, dos animais, das plantas? Como pode ele acreditar que existe mesmo algum tipo de "patente" sobre esse "bens"?

Patentes, direitos de propriedade, etc, só valem porque o nosso sistema econômico-social vigente faz deles uma crença, que na verdade nada mais são do que registros sobre o irregistrável.

O homem não é dono do planeta. Aliás, ele é tão dono quanto uma formiga, quanto uma pedra ou quanto uma urtiga.

Não é porque o homem é capaz de entender conceitos complexos como "propriedade", "patente", "registro", etc, que ele pode ser considerado dono de algo que não lhe pertence.

Tem uma passagem do site MercadoEtico que ilustra bem a idéia:

“É necessário substituir o extenso individualismo em matéria de propriedade, que toma como ponto de partida e princípio estruturador o lucro dos indivíduos potencialmente ilimitado, considerando ser ele um direito natural e não sujeito a alguma orientação conteudística, por um ordenamento normativo e uma estratégia de ação baseados no princípio segundo o qual os bens da terra, ou seja, a natureza e o ambiente, os produtos do solo, a água e as matérias primas não pertençam àqueles que por primeiro deles se apossam e os desfrutam, mas são destinados a todos os homens, para a satisfação de suas necessidades vitais e para a obtenção do bem-estar.

Este é um princípio radicalmente diverso; seu ponto de partida e de referência é a solidariedade dos homens em sua vida em comum e em competição. É daqui que é preciso deduzir as normas fundamentais, com base nas quais informar os processos de ação, tanto econômicos como também não econômicos.”

Cf. E.-W. Böckenförde, “Ethische und politische Grundsatsfragen zur Zeit” [Questões éticas e políticas fundamentais para a época], in Id., “Kirche und christlicher Gaube in den Herausforderungen der Zeit” [Igreja e fé cristã nos desafios da época], Münster, 2007, pp. 362-366.

 
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